quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Cuidado com feijoadas...

Eu estivera em casa no verão passado.
Não na minha casa, mas na de mamãe. Claro que, ao chegar, as compras ainda não estavam feitas já todo final de ano ela espera para me torturar daquela forma: indo ao supermercado.
Nunca sei se sou eu quem encolhe ou se é o carrinho de mão que aumenta, essa busca frenética pelo consumismo me sobe à cabeça: eu odeio mercado!
Quero deixar claro que neste caso eu realmente odeio!
Sempre a história sobre andar em todos os corredores procurando algo, o qual não necessitamos.
Mamãe era elétrica, pegava as comidas sempre repetindo:
“Olha que bonitinho! Você tem se alimentado bem, meu filho? Acho melhor comprar este iogurte com cálcio e ômega 3 e 6 para você!”
Eu sempre só concordo e sou obrigado a comer depois, ou seja, no verão eu engordo, engordo, engordo 3 largos kilos.
Quando voltamos para casa, mamãe joga as compras na mesa e puxa a panela para ver o que já irá fazer para o almoço, faz aquele calor infernal e tudo o que eu penso é em colocar as congelados na geladeira, ao menos assim eu tomo um ar refrigerado.
Mas no fundo eu sempre sei que quem irá cozinhar mesmo sou eu. Logo depois de arrumar tudo em seu devido lugar, com mamãe olhando, eu paro e espero a mesma frase: “Vem ajudar a mãe a fazer a comida, meu filho.”
Meu estômago dói, minha gastrite grita só de imaginar como será meu almoço - uma mistura das porcarias que eu sei fazer com as que minha mãe sabe fazer.
Algum dia alguém morreria por causa das invenções dela, tenho certeza disso.
Mas pacientemente coloquei-me à beira do fogão e, sorrindo, fiz tudo conforme a receita gravada de cabeça por ela enquanto ouvia num desses programas matutinos de canal barato que pensa que dona de casa só sabe isso, comida.
O ideal para aquele dia quente, aliás, para o verão inteiro, seria algo bem leve, de sabor macio, nada muito temperado e sem pimenta ou qualquer coisa que desse quentura gástrica. Esse seria o ideal, mas como em casa eu sempre fui o único normal, mamãe resolveu fazer feijoada.
Aquele suor caindo pela testa provavelmente serviria como uma pitada especial de sal naturalmente extraído de lugares desconhecidos.
“Pega as patas.”
“Essas?”
“Claro, quais outras seriam? As tuas?”
Mamãe era um pouco grossa, concordo, mas nada exagerado, era a cozinha muito branca e suja que a deixava alterada, com certeza.
“Coloca folhas de louro também, e sal também, e aquele tempero mexicano também.”
“Mãe, feijoada é brasileira, nada de mexicano aqui.”
“Faz o que tô falando! Até parece que nunca fiz feijoada na vida. Você comia bem, aliás.”
“Porque a senhora não colocava nada mexicano, sua feijoada era a tradicional brasileira.”
“Essa também é! Coloca um pouco de coentro também.”
E eu seguia sempre todas as instruções nada convencionais dela.
A casa começava a gritar, o cheiro era forte e eu espirrava, sempre! A alergia atacava e meu nariz tentava impedir que os odores estranhos a ele entrassem.
O barulho era de gente chegando, primos, tias, tios, parentada toda, família reunida em pleno domingo.
Mamãe era ainda o centro daquelas pessoas todas, mesmo estando um tanto desajustada conseguia reunir todos numa bela mesa de madeira no centro da sala todo ano.
“Que cheiro bom, dona Olinda!”
“É o Zé que tá fazendo, vai lá na cozinha, Amália.”
Amália era minha antiga paixão, prima de primeiro grau, quase proibido, aquilo me deixava louco quando adolescente. Agora Amália era ainda a mesma e minhas vontades eram outras. Claro que como em toda boa história, Amália passou a paquerar a mim depois que eu não quis mais nada.
“E ai, Zé, alguma namorada nova? Ainda solteiro? Olha que se você tá sozinho nesta casa, te pego de jeito!”
“Que isso, Amália!”
E continuava cozinhando desesperadamente, aos poucos me parecia que a cara do porco falava comigo...
“Ai, amigo, essa Amália é maior gostosa, porque não dá uns beijos nela?”
E eu metia a colher panela a fundo e afundava aquela cara feia. Logo vinham as bolhas e eu pensava ‘bom, esse ai morreu..’.
Almoço quase pronto, todos à mesa, mamãe resolve fazer um comunicado:
“Meus filhos, - mamãe tinha o hábito de chamar todos de filho, o que fazia com que parecesse que eu tinha irmãos, sendo que sempre fui e seguirei sendo filho único - faz uns dez anos que o pai do Zé, meu falecido esposo, morreu! É com grande pesar que digo isso, mas saibam que estou bem. Após sua morte repentina aprendi a cozinhar, dançar, fiz um furo a mais na orelha, coisa que eu sempre quis e ele nunca deixou, também me tornei mais comunicativa e hoje venho dizer que terei mais um filho.”
Está certo que dona Olinda, minha estranha mãe, já estava fora da vida, fora porque foi ficando um pouco anormal. Ai pode-se pensar e quem é normal?, mas convenhamos que uma senhora de 88 anos falar à mesa de domingo com a família toda reunida que irá ter mais um filho é um pouco demais. Sem contar que havia dito ter aprendido a cozinhar, era mentira, sempre nos engradados, eu via quando ia visitá-la.
“Mamãe, perdoe-me a intromissão, mas... Como assim ter outro filho? A senhora não acha que já passou da idade. Eu mesmo já tenho 60. Como espera que eu acredite ter um irmão com essa diferença de idade?”
“Ah, querido, não tenha ciúmes. Sabe, gente, ele sempre foi ciumento, mais até que o pai dele. Esse não me deixa em paz até hoje. Eu fui, logo após a morte de meu falecido esposo, no baile da terceira idade. Quando contei que passei a noite dançando com um agradável senhor esse aí ficou com a voz trêmula ao telefone, parecia que eu, uma senhora, seria estuprada!”
“Mamãe, não foi isso, eu falei para a senhora que eu havia engasgado.”
“Sim, sim. Mas conforme-se quanto ao irmão. Irei adotar uma menina! Sempre quis ter uma filha e irei realizar este sonho. Já estou vendo um lar de adoção para visitar.”
Todos ficaram pasmados, não é difícil imaginar.
Terminado o discurso, a família ainda quieta, nessas horas ninguém tem coragem de se pronunciar, começou a comer a feijoada feita por mim com os ingredientes daquela senhora que sorria.
Até nozes tinha, mas eu juro que não fui eu quem colocou.
Mais uma vez o pensamento me veio ‘alguém ainda irá morrer por causa dessa feijoada’.
Dali uns minutos a conversa foi retomada e todos voltaram a falar sobre suas vidas.
Claro que quando mamãe engasgou ninguém percebeu. Nem eu percebi. Ainda me pergunto por quê.
Dali uns instantes levantou da cadeira, foi quando se fez silêncio, mas em segundos caiu com a cara e corpo no prato fundo de feijoada.
Levei para o hospital às pressas, mas era realmente tarde...
Com muita cara de espanto veio o médico me dizer:
“Tua mãe morreu.”
“Qual a causa, doutor?”
“Alergia.”
“Alergia? Mamãe sempre passou de tudo e fez de tudo, nunca teve reação.”
“Ela já comeu comida mexicana?”
Então eu soube, mamãe morreu sufocada por causa da reação alérgica causada tempero mexicano.
Ironia.
No cemitério tudo o que eu conseguia pensar é que ao menos ela morreu feliz, querendo uma menina.
Quando cheguei na minha casa eu também não pude conter o sorriso amarelado, triste, porém de quem tem razão: aquela comida ia matar alguém, de novo, porque também foi numa dessas que papai morreu.

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