quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Salvador, o velho comedor da praça

Salvador era um homem quieto, desses sisudos que encaram o mundo sempre de mal humor.
Tragédia com pai, tragédia com mãe, tragédia com sobrinho, era tanto descaminho que Salvador não acreditava em nada não, nem santo, nem Deus, nem Alá, nem orixá algum que diminuísse seu pranto de ser sozinho.
Fazia seu café todo dia de manhã às 6 em ponto. Mas antes descia na padaria da rua de baixo pra comprar pão fresquinho, na opinião de seu Salvador esse era um dos poucos prazeres que ainda lhe restavam. Depois de tudo isso fumava seu cachimbo.
Mas ainda antes disso tudo, se levantava bem cedinho às 5 da matina, lavava o rosto, escovava os dentes pro mau hálito não espantar a atendente, colocava sua camisa de botão listrada, sua calça marrom lisa e seus sapatos sem cadarço.
Seu Salvador não era o que se poderia chamar de homem elegante, maior parte do tempo andava de botina e falava palavrão.
Nenhuma mulher o suportava, até porque ele era desse tipo que não gostava que encostassem nele, mas ele ia logo colocando a mão – era mão nos ombros, nas pernas, no traseiro... Seu Salvador era velho, mas ainda faceiro. Adorava uma boa mulata, aquela bem brasileira, bem queimada.
Mas dizem que com o tempo seu Salvador se cansou de só ir jogar xadrez e dama com seus amigos de praça. Enfezou, arrumou as malas e foi embora.
Claro que antes disso deu um rolo que acabou virando causo que se conta de pai pra filho lá na cidade onde ele nasceu. Onde é eu não sei, só ouvi falar.
Dizem que um dia seu Salvador contou que tinha uma mulher que o visitava. Absurdo que era, ninguém acreditou, ele insistiu, relatou todos os detalhes...
Larissa era uma morena fenomenal, corpo de artista, olhos indígenas, voz macia de quem fala manso, dentes brancos feito leite, unhas sempre bem pintadas, um rebolado que Nossa Senhora e um humor de dar inveja em qualquer mocinha da cidade. Apesar da idade baixa tinha mentalidade alta, sabia falar das coisas da vida como quem já tivesse vivido tudo. Talvez de fato fosse verdade, Larissa era bem cheia de histórias mal contadas.
Mas seus amigos todos ficaram descrentes, quem poderia ser essa deusa bondosa que surgia sem que ninguém da vila avistasse?
Reza a lenda que ela ia lá de madrugada, que tinha a chave da porta da frente, abria e entrava toda faceira como se já fosse de casa.
Seu Salvador sempre a esperava no sofá da sala. De fato seus amigos já haviam cogitado algum milagre porque Salvador andava muito contente.
Mas daí crer que tinha mulher na parada era coisa pra crente muito do fervoroso, e lá ninguém rezava.
Seu Salvador resolveu apresentar a tal mulata, mas não é que ela só podia sair à noite mesmo? Falava que trabalhava o dia todo, arranjava desculpas de todos os tipos, mas a verdade é que fato algum era comprovado. Salvador não sabia nem onde a menina morava.
O negócio é que um dia chegou na tal praça um sujeito armado, gritando pra todo lado: Eu mato! Eu mato, seu desgraçado!
E não é que o negócio era com o Salvador. Todos ficaram assustados, levantaram e abriu aquela roda.
“Mas o que aconteceu, seu João?"
“Salvador, esse cabra canalha, ele comeu a minha filha, agora vai engolir bala!”
Tava lá o que ninguém esperava, a tal Larissa existia e ainda por cima era filha de um cabra novo na vila, tinha chegado fazia uns 9 dias. Freqüentava a praça uma vez ou outra, e, aliás, era um dos que ouvia as histórias românticas de seu Salvador.
O que aconteceu é que o pai, desconfiado da filha, que sempre saia à meia noite de casa, resolveu segui-la e viu a cena que todos juravam de pé junto ser mentira: Larissa era amante de seu Salvador.
Contam que neste dia seu Salvador quase morreu; do mau humor que tinha passou a rir, fez piadas e o pai da dita donzela só mais se enfurecia.
Foi um segura daqui, aparta de lá que ninguém entendia.
O fim da história é que seu Salvador foi embora mesmo, arrumou as malas e se mandou. Claro que levou a pequena menina com ele.
É... Contando ninguém acredita.
Mas o causo é verídico, seu Salvador, mais conhecido agora como “o velho comedor da praça”, levou embora Larissa e nunca mais voltou. Dizem que hoje ele mora numa praia.
Dizem, vai saber...

sábado, 8 de janeiro de 2011

Desatando nós


Por encarar as perdas com pesar, sofreu durante anos consecutivos escravizado pelas próprias lamurias. Levava no dorso um número cada vez maior de cicatrizes que pareciam se acumular durante as estações, esticando a pele, tornando-o cada vez mais imóvel. Aos 30 andava de lombo arqueado como um animal ferido que esperava levar o próximo bote. À medida que avançava na vida retrocedia na busca da felicidade, pois fazia questão de ignorar tudo àquilo que fosse relacionado ao seu ser, deixava que tudo fosse sobre o outro. Levava o outro consigo tão atado a sua alma que não mais separava o seu interior do mundo ao redor. Esqueceu-se que respirar era atitude no singular...
Não que o outro não tivesse culpa, mas não cabia a ele atribuí-las, afinal ninguém machuca aquilo que é intocável a não ser que se deixe tocar. Ele deixava, era sua autoflagelação, seu inferno particular, seu pagamento de dívida para com o mundo. E a cada nova marca que ostentava perdia parte de sua tão sonhada humanidade. Menino de carne que virou madeira, e por fim transformou-se em pedra fria.
E foi a sua própria frialdade que o fez ver onde tinha enfim chegado. Chegou ao lado oposto, oposto de si mesmo. Conseguia ver claramente o seu fim apesar de já não analisar mais os próprios comportamentos, sabia do quão destrutivo eram, embora não mais identificasse os porquês dos mesmos. Era tudo um vazio, um sopro de vácuo, que o assustava a ponto de não deixá-lo pensar.
Rogou por uma ajuda que não necessitava, estava tudo em suas mãos. Ao enxergar o quanto estava se enganando com a forma de aceitar as perdas partiu em busca de si. Sem bagagem, partiu carregando uns trocados na mão esquerda, e uma foto na outra mão. A vida o fez ambidestro, portanto sabia usar tão bem os trocados quanto olhar para aquela foto, que o lembrava do que não queria mais para si mesmo...
Conheceu gente, largou gente, amparou gente, e quando pensava que estava mais perdido por centrar-se cada vez mais no outro conseguiu se achar. Percebeu tão lentamente que nem entendeu a percepção. Aprendeu a ser ator principal em seu teatro. Agora estava no papel principal de sua vida, tornou-se personagem esférica, complexo, trilhou o caminho entre a admissão de culpa e a análise das atitudes.
Dessa forma mudou o foco de seu olhar sobre as perdas. Começou a enxergá-las como bênçãos que se acumulavam em sua trajetória, cada uma foi responsável por um novo recomeço, por um novo olhar, por um novo renascimento. E, como era bom saber de sua infindável capacidade de se recriar, de levantar do chão que o amparou tão duramente através de seus próprios pés.
Deixou por fim as justificativas de lado. Assumiu para si mesmo o quanto imperfeito era, e como era bela toda a imperfeição acompanhada de uma análise de comportamentos. Era capaz de entender os porquês de tudo aquilo que era proveniente de suas atitudes. Fazia, enfim, sua parte.
Havia, portanto, desatado o nó dos outros de si mesmo, era problema deles. Só deles...

Desculpas

A palavra desculpa não deveria existir, posto que culpar alguém não é cabível a um ser.
O culpado por algo só o é se assim se sente, e por isso existe o perdão, não para ser dito a quem se machuca, mas para ser tomado para si próprio.
O importante das ações não são seus fins, mas a consciência que delas emerge.
Se o responsável, de alguma forma, assim se sentir, deve tirar o peso de si mesmo, e então dizer perdão ao mostrar que se libertar é a melhor forma.
Porque mesmo o que outro não perdoe, ninguém cerra a alma de outrem, assim sendo o acusado não pode ser visto como carcereiro da boa vontade alheia.
Por isso é hipócrita pedir desculpas, assim como hipócrita desculpar, presumindo que culpar alguém é julgar suas ações sem conhecer os motivos, causas, delírios.
Ninguém conhece outro ser senão a si.
Ético seria questionar o próprio sentimento acerca de quem fez algo, e não culpá-lo por um sentimento que não é dele e que não é de sua responsabilidade.
Estar livre é libertar-se também das tentativas de conseqüência alheia. Até porque muitas das vezes o outro nem mesmo sabia o que estava a praticar, e não se pode culpar alguém pela ignorância de não saber o que sentimos.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Despedida

Como se despedir? Como dizer tchau? Como dizer adeus?
Certa vez quando eu fui embora não me despedi de ninguém, mas também nunca mais os vi.
Talvez eu acreditasse que um dia eu voltaria, que eu estaria sempre ali, do lado, ajudando, apoiando.
Com alguns eu mantenho contato, é verdade, mas outros se foram. Eu me fui, a vida vai seguindo e tudo tem que ir continuando.
Mas como fazer uma despedida? Como não chorar? Como abraçar a ponto de marcar na pele para nunca mais se esquecer?
Como beijar e expressar todo o amor que sinto? Como segurar sabendo que vou cair?
Como olhar sabendo que eu deveria mostrar um riso, sendo que não irei sorrir?
Por que algumas pessoas são tão difícies de serem deixadas?
Às vezes a gente nem tem nada, mas parece que aquele instante é tudo.
Talvez alguns digam que são migalhas, que nos contentamos com pouco, que há alguém para oferecer um mundo!
O platônico, o não dito, o engasgado, aquilo que não está nem entre aspas.
Como se despedir?
Como perder sem se deixar ruir?
Vamos caindo aos pedaços, mesmo quando o outro ainda está ali.
Vamos nos rasgando, dilacerando o peito e tentando acreditar que deve haver um bom motivo para ficar... Mas não há.
Como se despedir sem saber se o outro realmente não quer que a gente vá?
O que eu guardo como lembrança são os cheiros.
O perfume alheio que ainda me abraça mesmo depois deu ter ido para casa. Mesmo quando já estou na cama. Aquele cheiro de quem ainda pesa sem nunca ter se deitado.
Será o silêncio em si uma forma de nostalgia disfarçada? Um sentir saudades sem dizer, sem se comprometer?
Como o silêncio corta fino e rente feito faca afiada.
Uma espada no peito. A falta de palavras...
Uma despedida.
E o acreditar que se está indo sempre de volta para casa... Mesmo indo prum lugar diferente.
Porque no fundo eu sei que a pessoa mais importante eu levo comigo: eu.
Para sempre...